quarta-feira, 4 de maio de 2011

Depoimento da Dançarina Shaide Halim

A dança do ventre é quase que um estereótipo do ideal de feminino. A primeira imagem que vem à mente quando um leigo nesse assunto pensa em dança do ventre é um harém, com sheiks, sultões, mulheres lindas com olhares sedutores e trajes brilhosos, envolvidas por véus esvoaçantes e sedosos, música lânguida, e seus corpos reproduzindo movimentos sinuosos que lembram os movimentos de serpentes! É a visão do paraíso para os machos de plantão, não é não?

Já no mercado profissional da dança oriental, a feminilidade da bailarina é explorada de uma forma totalmente adversa. A verdadeira dançarina é aquela que, ainda envolta em véus esvoaçantes, usa a roupa da última moda, que pode fugir do padrão “ternurinha” e ser bem colada ao corpo, às vezes, com a saia curtinha, num design ultra moderno que é a roupa do momento nos shows do Egito. Ela obviamente se comporta como uma deusa em cena, mas não aquela deusa lânguida, de olhar sensualmente doce dos contos das mil e uma noites. Ela é praticamente uma tigresa, tal qual aquelas belas modelos da capa da Sexy. Colocou silicones para valorizar a comissão de frente, tem a barriga devidamente definida por horas de malhação pesada. Seus cabelos são lindamente escovados, e sua postura, enquanto dança, é a de um ser não-humano. Uma deusa, tigresa, sexy, linda, poderosa..., e, obviamente, inatingível.

Não se esquecendo, claro, que seus movimentos são milimetricamente estudados, cronometrados dentro da música, e a agilidade de seus quadris é algo absurdamente definido e detalhado. E quantos giros... E quantas poses estratégicas na coreografia para os clicks dos fotógrafos. E a música lânguida? Que nada! Isso é coisa do passado! Bom mesmo é aquela música ultramoderna da Nancy Ajram, ou aquele solo de derbake complexo que dá pra fazer mil floreados de deixar o público de boca aberta com tanta técnica.

Mas quem foi que disse que para sermos femininas temos que ser delicadas como nos contos árabes? Ou femme fatales como dita o mercado belly dance? Não existe uma outra possibilidade? O mundo dos sentidos não é tão amplo que podemos experimentar a feminilidade em outras formas mais sutis? Ou mesmo nada sutis, pouco importa... mas que seja fora dos padrões que tentam nos impor, de tempos em tempos....

Sobre o feminino na dança do ventre, posso dizer que não faço pesquisas sobre esse assunto, nem sinceramente nunca parei para pensar nisso com tanta profundidade. Talvez porque a minha feminilidade seja muito bem resolvida na minha cabecinha, o que me faz ignorar tal preocupação e imaginar que não seja realmente necessário me enquadrar num estereótipo pré-formatado para ser ou não feminina enquanto estou em cena.

Saindo dos estereótipos e falando sobre dança: eu comecei com o ballet, fui pro jazz, para a dança afro, dança indiana, flamenco, ou seja, todas essas danças são compartilhadas por homens e mulheres. Quando caí na dança do ventre, também já estava envolvida até o último fio de cabelo com o tribal (que conheci antes mesmo da dança do ventre), que também aceita de bom grado meninos e meninas.

Mas, mesmo sem estudar esse assunto de feminilidade na dança do ventre com profundidade, e levando em consideração que eu tenho uma visão de dança, em geral, que não cabe nos parâmetros que a dança do ventre pede, já que vejo o ato de dançar como algo universal, que não escolhe sexo, raça, idade, biotipo (quem faz essas escolhas ou cria alguns padrões somos nós, pois, mesmo as origens da dança do ventre estando diretamente ligadas à mulher.

Vou usar a dança flamenca e a dança do ventre como referências. Ambas são danças consideradas extremamente sensuais, mas cada uma ao seu modo, obviamente. Então, vou dizer como sinto a minha feminilidade em cada uma delas.

A dança do ventre para mim, hoje, é bastante diferente das minhas primeiras experiências nessa área. Tive a influência da mudança de professoras, do fato de eu ter me tornado professora e entrado em contato com outras maneiras de encarar e representar essa feminilidade na dança, também de ouvir muitos relatos de outras amigas do meio etc.

Quando comecei eu sentia a dança do ventre, em meu conhecimento de iniciante, como algo delicado, etéreo, uma ninfa no bosque. Eu era incentivada a realizar os movimentos de forma suave, delicada, pequenos, sem esforço... Bom, foi uma experiência que tive com quase todas as minhas professoras, da primeira à última, com exceção de uma. Essa professora já me pegou semi pronta, pois já estudava há alguns muitos anos quando cheguei às suas aulas. Mas, mesmo assim, ela virou minha cabecinha do avesso.

Tudo aquilo que ouvi antes e depois dela, de manter a leveza, a suavidade e a delicadeza, etc, comuns na técnica egípcia, depois dela já não representavam mais nada pra mim. Porque ela, em uma única frase fazia uma síntese de tudo o que eu precisava ouvir: seja você mesma enquanto dança. Pois é, eu, com esse bundão, sofria horrores para controlá-lo e fazer as coisas com a delicadeza de quem tem o corpo da Sininho do Peter Pan. Para piorar minha situação, o estilo tribal trabalha com movimentos grandes e fortes, onde a feminilidade é mais próxima ao Flamenco, com força, vitalidade, energia, liberação.

Então, mesmo enlouquecendo minha professora de dança do ventre seguinte, lá estava eu com meu quadril enorme, batendo pra lá e pra cá e ouvindo ela dizer: “internalize o movimento... faça pequenininho!!!” Mas o pequenininho era coisa do passado pra mim, eu só consegui me soltar na dança do ventre de corpo e alma quando me deixei ser eu mesma, com a bunda e a força do tamanho que Deus me deu!

Bom, pode parecer que não tem nada com nada com o assunto da gente, não é? Mas tem. Foi a partir daí que eu descobri que a minha feminilidade é minha, e vai ser expressa de uma mesma maneira em qualquer dança que eu dançar. Tentar ser mais ou menos feminina, porque há na dança um caráter x ou y, eu particularmente não vou conseguir. Porque no momento que piso num palco, quem está ali é a Shaide lá de dentro, que vai passar pro quadril, ou pro taconeo do flamenco, o que eu sou, o que eu sinto, o que a música me diz. É como se eu entrasse em transe, e minha vontade racional fizesse pouca diferença. Então, minha feminilidade vem à tona de maneira natural, e não numa tentativa forçada de teatralizar emoções, tentando se adequar aos padrões de “ser delicada", “ser fatal” ou “estar dentro do que dita a moda belly dance”.

Uma vez, discutindo com amigas sobre a questão da sensualidade na dança do ventre, eu disse que prefiro não pensar nisso enquanto danço. Não usar a sensualidade de forma consciente, justamente para não cair no padrão femme fatale que algumas bailarinas adotam. Até porque, se eu sou sensual dançando, é algo que acontece de forma natural e espontânea, e não algo maquinado, preparado, estudado. Então, alguém disse que eu não era nenhuma planta dançando, e que tinha meu lado sensual e que não adianta querer negar, etc.

Mas eu não nego, não!!! Atire a primeira pedra quem, em algum momento, em alguma música, não se deixou levar. Mas é algo que acontece quando dançamos com alma, é algo tão nosso, que por mais que eu estude maneiras de querer aflorar minha sensualidade, ou minha feminilidade, ou minha delicadeza, ou minha força etc., isso só vai acontecer na hora certa, com o amadurecimento, e, às vezes, sem mesmo me dar conta disso.
Podemos buscar formas de conduzir nosso caminho ao amadurecimento artístico, mas ele acontece de dentro para fora, e não da forma contrária.

Quando pensarmos sobre a relação da feminilidade na dança do ventre ou no flamenco, não devemos imaginar algo que a dança traz, e, sim, algo que nós levamos à dança, cada uma do seu jeito. Quantas e quantas vezes já não assistimos uma bailarina dançando e pensamos: nossa, eu faria isso de outro jeito, porque a música que ela dançou me passa algo muito diferente do que o que ela mostrou. Bom, eu pelo menos costumo assistir alguém dançando e prestar atenção na música justamente para reconhecer como ela "sentiu" aquela música e, também pensar em como eu sentiria se estivesse no lugar dela.

Ouvir a música é dar o primeiro passo para dançar, não é? E pensando assim, é fácil descobrir porque a dança flamenca nos faz resgatar nossa dança animal: a música já traz em si os elementos que vão acordar nosso bicho e fazê-lo querer dançar. A música flamenca tem uma força, um sentimento, uma dramaticidade ímpar e, a partir do momento em que ouvimos e decodificamos o que a música nos diz, vamos trabalhar nossa dança, nossa alma, forte e vigorosa, mas extremamente sensual e feminina, não é mesmo?

Já a música oriental pode nos remeter a tantas coisas ao mesmo tempo... a leveza e a força estão presentes numa mesma música, às vezes num mesmo momento, com a sobreposição de uma batida energética com uma melodia suave. Então, para quem não tem ou não quer descobrir sua sensibilidade, é mais fácil criar um estereótipo de dança sensual, ou uma regra de dançar como uma ninfa no bosque. Ou, a terceira opção, a mais moderna, a de usar todos os seus recursos técnicos e estéticos, esquecendo-se de colocar sua emoção na dança. É mais fácil rotular do que parar para ouvir e sentir, não é mesmo?

Felizmente, eu que por algum tempo andei me decepcionando com a dança do ventre, hoje tenho visto algumas coisas muito legais, de gente que está deixando de querer ser a ninfa-sensual-deusa-tigresa-odalica-dentro-dos-padrões e sendo apenas "ela mesma e sua dança". Acho que a partir do momento em que as bailarinas passarem a trabalhar a técnica de mãos dadas com os "ouvidos", vamos ver muito "animal-dança do ventre" saindo do casulo, viu?

Bom, e como o assunto é feminilidade, eu sou obrigada a dar meu pitaco em outro assunto muito polêmico e até chato. Homem pode dançar dança do ventre ou não pode? Se um homem consegue dançar dança do ventre (mesmo as origens dessa dança estando ligadas à mulher), é porque a dança é um ato universal, possível de ser realizada por qualquer pessoa, de qualquer sexo, raça, biotipo. Eu fui "criada" em danças mistas, talvez por isso não me adeqüei ao pensamento de muitas pessoas do meio da dança do ventre, de que esta é só para mulheres. Entendo o surgimento da dança, sua relação estreita com o corpo feminino, rituais religiosos e afins, mas para mim a dança sempre será considerada como algo livre, que parte de cada um praticá-la ou não. Se a pessoa vai dançar bem ou não, aí é outra história. Se vai ser profissional ou fazer por puro hobby, é um outro contexto. Mas que ninguém pode impedir ninguém de dançar o que bem quiser e entender...ah, isso não pode mesmo! E já aviso logo que eu não quero que ninguém concorde comigo, viu? Só também não quero ter que concordar com certos convencionalismos que não se aplicam àquilo que eu defendo como forma artística. Mas isso é um outro assunto. Eu só quis deixar claro o porque de não ter interesse em estudar a feminilidade na dança: porque eu não me sinto mulher ou homem, gorda ou magra, bonita ou feia quando danço. Eu me sinto um ser dançante, sem sexo, sem raça, amorfo. Enquanto estou dançando, eu apenas me imagino como sentimento.

Voltando ao meu bundão: ele é original de fábrica, daí fica difícil, num corpão, tentar reproduzir movimentos muitos delicados. E isso eu não aplico só à dança do ventre. No ballet, eu adorava fazer aulas com os meninos, grandes saltos, movimentos largos, e apesar de cumprir meu papel como moça, eu não gostava de muitas coisas que são resguardadas à parte feminina desta dança. É uma questão de gosto. Mas, continuei no ballet mesmo assim, porque a base desta dança é perfeita para tudo o mais que se vier a fazer depois. E vale a pena apertar os pezinhos naquelas sapatilhas de pontas torturantes.

Então, o que aquela minha professora dizia, é para sermos sempre aquilo que queremos. Independente do tamanho do bundão, ser delicada ou ser dinâmica e vigorosa é algo único e pessoal de cada dançarina. Ela mesma era uma senhora bem cheinha, mas seus movimentos eram extremamente delicados e suaves. Essa foi a escolha dela. Se é que podemos escolher... Se é que isso já não está dentro da gente e simplesmente aparece enquanto dançamos, não é mesmo? Eu particularmente não sou uma pessoa de movimentos delicados, quem me conhece sabe que sou irriquieta, expansiva... E esses elementos da minha personalidade acabam chegando também à dança. E não é à toa que me identifico com coisas do gênero: tribal, jazz dance, dança afro etc. Independente disso, estudei técnica de dança do ventre egípcia: suave, delicada, de movimentos pequetitinhos... Mas, obviamente, adequo às minhas escolhas e à minha personalidade na dança. Pra tudo se dá um jeitinho!

Publicado originalmente em  http://beladanca.blogspot.com
Proprietária do Estúdio Beladança. Bailarina, coreógrafa e diretora artística das cias: Cia Halim Estilo Tribal Brasileiro (a primeira trupe tribal brasileira, desenvolvendo essa modalidade no Brasil desde 2001), Cia Lotus Nrtya Naya de dança indiana moderna e Cia Ventre Brasil Beladança (que trabalha a mistura da dança oriental com ritmos e movimentos do Brasil).

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